— ou: sobre o medo da morte e que cazzo é câncer, afinal
10 de junho de 2019
[Nenhum gato foi comido na confecção desse post]
— Susana, você está com uma cara ótima! [obrigada] [em tom mais baixo:] Você tá bem agora, né?
Minha gente.
Porque é pra minha gente que eu escrevo esse textículo, com todo o amour do meu coração e limitação verbolânguida das palavras.
Gostaria de comentar, bom, algumas cousas.
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Faz tempo que eu sinto a necessidade pessoal de falar sobre o câncer e a vida após um câncer para não-‘iniciados’ no baguio.
Essa necessidade me grita tipo wé wé alarme vermelho sempre que eu ouço a pergunta acima ou variações que, no fundo, querem dizer mais ou menos isso:
— Mas você tá curada?
Perdi a conta de quantas vezes tive que responder a essa interpelêition nos últimos 1.5 anos, desde meu diagnóstico no longínquo-pero-nope dia cristiano de 05 de outubro de 2017 até, sei lá, ontem. Ou daqui a pouco.
A pergunta frequentemente vem acompanhada de olhares temerosos/esperançosos que parecem sussurrar: “pelamor me DIZ que vc tá bem pra gente poder mudar de assunto e ser feliz?”
Não me levem a mal; eu não os levo a mal. Meio que todo mundo quer meu bem, eu quero o bem de todos.
Mas, como uma paciente em recuperação de um câncer de mama vivendo nesse mundinho de meu-deus, percebo que existe um certo grau generalizado de desconhecimento sobre o câncer, essa enfermidade paradoxalmente tão comentada, tão ululantemente presente no nosso imaginário, nas novelas da Grobo, nos finais infelizes, nas famílias dos cinco continentes, mas que ainda é chamada de “the Big C” ou “aquela doença” por muitos, talvez por temor de evocações satânicas por meio de conjurações palavrísticas.
A palavra câncer anda junto com o medo da morte.
É o medo da morte que eu vejo refletido em tantos olhinhos inquisitivos pousados sobre os meus.
Eu sou escorpiana pacaraio, mas num sô feita de aço.
Esse muy sincero texto é uma resposta mais meditada à recorrente Pergunta. Espero que possa servir também como um convite à reflexão e um mícron de inspiração pra que hoje, hoje mesmo, eu-você-nós-el@s sejamos mais legais, mais humanos, mais solidários e mais felizes. Porque, sim, o dia de amanhã ninguém sabe. E isso eu já sabia antes do câncer, que por sua vez eu não tinha a menor ideia de que viria. Bom. Cêis me entenderam —
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WTF IS CANCERRR
Vamo lá, info básica (que muita gente me pergunta).
O câncer é um mundo loko, pra não dizer muchos mundos. Existem tumores sólidos (como de mama, próstata, ovários, cólon, pulmões) e tumores do sangue (linfomas, leucemia), e cada caso envolve um tratamento completamente distinto. O tumor pode ser local ou avançado/metastático (quando já se espalhou pra outros órgãos/ossos etc). A perspectiva pode ser de cura (também chamada de ‘remissão’, e que pode durar ‘pra sempre’ ou até uma próxima recorrência) ou de cuidado paliativo/cronificação, no caso de tumores metastáticos ou de alguns tipos de leucemia ou linfomas, por exemplo.
A definição clássica de câncer é o crescimento anormal de células dentro do organismo. Esse tipo de ocorrência pode acontecer ziles de micro-vezes ao longo das nossas vidas, e aos 70 anos de idade quase toda a humanidade já teve algum ‘câncer’ combatido silenciosamente pelo próprio sistema imunológico.
Hoje em dia, existem correntes de estudos que buscam abordar e tratar o câncer como uma doença metabólica ou autoimune. Eu leio muito a respeito, tenho interesse no baguio em primeira mão, claro. Se quiser vem falar comigo.
Os tumores sólidos podem ser detectados por indícios ou casualmente por algum exame de rotina (euu), e em geral são ‘visíveis’ a partir de 1 cm ou 1 milhão (!) de células.
Eles têm lugares ‘preferidos’ pra se instalar, mas já vi gente que teve câncer no joelho ou no pé.
A medicina convencional (odeio essa palavra, pero bueno) combina tratamentos como cirurgia, radioterapia, quimioterapia intravenal ou oral, bloqueadores hormonais e imunoterapia.
No meu caso — câncer de mama hormonal, luminal 1B, grau 3 –, o tumor foi descoberto ainda pequeno, com 1,5 cm de diâmetro no total, no quadrante inferior da mama esquerda. A cirurgia foi marcada no dia do meu diagnóstico, e foi o primeiro passo do meu tratamento, que incluiu um longo e árduo ano de quimioterapia + radioterapia e, há um ano, hormonioterapia (com previsão de mais 9 anos de tratamento).
Os tratamentos evoluem continuamente e, apenas 15 ou 20 anos atrás, eu não teria passado pelo mesmo protocolo, com possíveis impactos sobre sobrevida e recuperação.
Por isso, o investimento em pesquisa É MUITO IMPORTANTE. Se vcs considerarem doar pra uma causa, taí uma veemente sugestão.
Eu contribuo com 3 projetos relacionados à investigação de tratamentos e ao bem estar do paciente, e participo como beneficiária ou voluntária de diferentes iniciativas. Normal. Comento porque pra mim é algo fundamental. Eu passei por tratamento sozinha na gringa, longe da família, e ter um amparo externo foi crucial. Hoje em dia participo de 2 grupos de apoio, além de estar ligada a comunidades de ‘breasties’/’amigas do peito’ na Espanha, Brasil e EUA, com mulheres de todas as idades, procedências e estilos de vida.
É evidente que gestão emocional e estilo de vida cumprem um papel essencial na qualidade da saúde de uma pessoa, enferma ou não. Hoje em dia, por exemplo, sabe-se que a genética responde por apenas 5 a 15% dos casos de câncer. O resto é a vida e o caos. Por isso, ainda mais do que antes, assaz me conecto aos grupos de apoio e a temas relacionados a autoconhecimento e evolução pessoal, além de ter interesse por algumas terapias complementares (mais do que alternativas, porque eu sou a favor de conciliar com tratamentos alopáticos — essa é minha opção, e respeito a de cada um). Mas, depois de conhecer a história de centenas de pacientes, posso dizer uma grande verdade pra vocês: O CÂNCER, GENTE, NÃO DISCRIMINA.
Ao longo do último ano, conheci gente super zen e vegana que ficou malz e outras pessoas semi-junkies e estressadíssimas que tão aí super rosadas e saudáveis.
Acho importante explicar isso pra não-pacientes, especialmente os ‘sabidos’ que vêm com teorias simplificadoras sobre A Origem Emocional do Câncer. Sim, gente, eu sei. Obrigada por iluminar meu caminho.
O CÂNCER TEM CURA?
A pergunta do zilhão.
Vamo responder assim: o câncer pode ter cura.
Especialmente se é detectado em estágio inicial e ainda não se espalhou pra outras paragens.
Mesmo os cânceres mais avançados ou metastáticos podem — podem — ser tratáveis hoje em dia. O câncer de mama estágio IV (metastático) pode ser controlado em alguns casos. Eu mesma sigo umas mina fofa gata xóvens no Instagram que têm IV controlado há anos.
Ainda assim, o estigma da metástase é real, e nós, pacientes de câncer, temos paúra só de pensar na parada — se o câncer é considerado sinônimo de morte pra muitos, a metástase seria a antessala.
Por isso, existem tantas campanhas pra arrecadação de fundos pra pesquisa de tratamentos para câncer metastático. É o tipo de câncer que menos investimento recebe no mundo. E é super importante — muitos cânceres que hoje foram detectados em estágio inicial, como o meu, podem virar metastáticos adiante, seja em 2 ou 10 anos. SACOU.
MAS E AÍ, SUSANA, CE TÁ CURADA?
Sim!!!
Estou em remissão do câncer de mama desde o final de agosto passado, quando terminei parte essencial do tratamento e um check-up geral apontou que tava tudo NED (No Evidence of Disease, sem evidência da doença).
Isso pode mudar a qualquer momento. Ou não.
Explico meu caso porque pode também elucidar algumas dúvidas que vejo muita gente tendo sobre a vida ‘pós-câncer’ em geral.
No caso do câncer de mama, o protocolo comum são checkups mais frequentes nos 2 a 5 primeiros anos, com ‘alta médica’ dada a partir dos 5 anos (se o ser humano sobrevive nesse ínterim, claro). No meu caso, segundo minha oncologista, o risco de recaída é mais alto depois dos 5 anos (hooray), daí a suposta necessidade de um acompanhamento de 10 anos.
Me considero curada porque o câncer que eu tinha não está mais aqui.
Eu não tenho evidência de câncer desde outubro de 2017, quando uma cirurgia extraiu um quadradinho de uma prosaica matéria branca “with clear margins” (ou seja, conseguiram extrair o tumor inteiro).
Desde então, todo o tratamento que se seguiu foi preventivo, para diminuir a chance de uma recorrência (meu tumor era um grau 3 — o grau mais agressivo –, e um teste genômico chamado Mammaprint apontou um alto risco de reincidência).
De cicatriz, restaram a auréola esquerda cortada e um corte na axila esquerda, além de tatuagens de pontinhos no tórax e nas laterais do peito (da radioterapia) e 6 pontos esmaecidos no peito, no lugar onde tubos de braquiterapia me atravessaram pra enviar radiação super powa pra região original do tumor.
Já de efeitos do câncer e seu tratamento, a lista é longa, longuíssima. Diária, minha vida.
Os efeitos físicos são duros, embora, como poderia dizer?, manejáveis. Posso citar uma bula de remédio tarja preta:
– dor no corpo, menopausa induzida pela pílula que tomo todos os dias, calores/sufocos noturnos, insônia federal, altos níveis de cortisol (= ansiedade) por causa dos bloqueadores de estrogênio, brain fog (= Dori mode, que é como me refiro aos apagões e distrações mais frequentes no meu raciocínio, atenção e concentração), neuropatia (perda de sensibilidade nas extremidades), perda muscular, perda óssea, perda de visão, perda de elasticidade e ressecamento da pele, rigidez articular, ganho de peso/metabolismo mais lento, unhas (no meu caso, dos pés) esbranquiçadas/enfraquecidas etc.
Nem que eu queira esquecer, esses efeitos físicos estão aí pra me lembrar. E pra me assombrar às vezes, porque eu tenho que fazer 104370 exames periódicos e cada dorzinha pode ser algo ou pode ser nada, e é um labirinto do caralho, tem horas em que nem sei com o que devo me preocupar ou não. Eu tô aprendendo a gestionar essa montanha-russa de incertezas, e também a sentir meu corpo e suas mensagens com muito mais atenção e carinho. Isso não impede que em determinados momentos me domine o mais puro desespero, e aí minha meditação e exercícios de respiração e abraços do boffs e dos amigos ajudam MUITO.
Mas o mais difícil de tudo, pra mim e pra muit@s que conheço, é lidar com os efeitos não-físicos do câncer.
É aí que mora, é verdade, a possibilidade mais preciosa de crescimento pessoal.. Eu acredito no poder da crise. Mas, gente, não vou adornar o processo com pérolas de autoajuda, não: é fudido.
A pílula que tomo todos os dias (e tomarei, por até 10 anos, embora eu esteja pouco a pouco ponderando se o farei mesmo, exatamente por todos os seus efeitos, e isso é um outro capítulo grande e gordo..) me bota em menopausa (não menstruo desde dezembro de 2017 e, a julgar pelos exames hormonais, nunca mais).
Meus ovinhos criopreservados em 2017 dormem tranquilos no Hospital de Sant Pau em Barcelona, mas não creio que serão utilizados.
A menopausa química traz de brinde ondas absurdas de irritabilidade, ansiedade e depressão. Isso, somado ao impacto traumático de toda a jornada, IS FIRE BEIBEIIIIIII!
Eu sempre fui meio intensa e neurótica, mas sentir essa perda de controle sobre minhas próprias emoções tem sido fohda.
Particularmente, eu tenho resistido sem remédios, por convicção própria. Minha gaveta de calcinha tá cheia de tarja preta receitado pra depressão e ansiedade e insônia que eu nunca tomei, ou tomei um dia e disse tá-louco-meu. Opção pessoal. É muito difícil lidar com tanto bicho, e muita gente que conheço, tendo passado por câncer ou outros traumas (que a vida traz muitos pra todos nós), recorre a esse apoio. As únicas paradas que tomo são melatonina, valeriana e um azeite de CBD + cannabis receitado cuidadosamente por uma clínica privada de Barcelona, com apoio do meu clube de cannabis medicinal local (Barcelona tem dessas maravilhas, além de um sistema de saúde <3 <3). Combo antiinflamatório, ansiolítico, antitumoral natural. Não é a panaceia universal. Mas boto fé.
Sendo muito franca, tem dias em que eu tô chorando sem motivo e outros em que quero matar a humanidade.
Isso + a incerteza sobre o que vai rolar é pra mim gestionável, mas exaustivo.
Antes do câncer eu já tinha umas crises, mas agora a parada amplificou.
Como viver em TPM ou (errm) menopausa full-time.
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Portanto, dizer que estou curada ou “voltar à vida” depois de um câncer não é algo simples.
Acho que posso estar falando por outros pacientes também.
Não tem mais volta – existe um antes e um depois.
E, por isso, embora eu esteja aqui viva vivíssima mais do que nunca, e feliz paka por isso, tive e estou tendo que passar por um luto.
Luto em relação a quem eu era antes do câncer; à minha vida antes, minha disposição física e psicológica.
E, principalmente, luto em relação à inocência — aquele lugar mental quentinho e protetor que faz a gente acreditar que a gente é imortal, que tudo é pra sempre, e que estamos protegidos da vida.
Não sei se o câncer vai voltar; é possível.
Não sei se terei uma metástase em algum momento da vida; é possível.
É possível que eu fique bem por muitos anos e possa envelhecer e ter uma casinha na praia e uma bicicleta vermelha, e ficar enrugada e sábia. É nisso que eu penso, é com isso que eu conto.
Às vezes cêis me perguntam se tô curada e um arrepio passa pela minha espinha, porque eu penso em tudo o que contei aqui, mas eu acredito que a melhor convicção a seguir é: sim, tô curada, tô xxxxóia!
Agora, xô falar que o culto excessivo ao positivismo também fode a cabeça do ser humano, como um bullying às inversas. Acho que a gente tem que se revitalizar, pensar positivo etc, mas também tem o direito de se sentir uma merda e com medo, desde que, claro, enxergue essa imersão como uma etapa num processo evolutivo. Porque, se a gente não olha de frente os bicho e senta com eles pra tomar um chupito e despachar pra nunca mais, os bicho continuam azucrinando.
E TODO MUNDO TEM SEUS BICHO.
Sei lá, again, talvez seja papo de escorpiana.
Sou valente para caralhos com asas, e digo sem falsa modéstia, e por batalha própria; e às vezes tenho cagaço. Muito, aterrador, paralisador.
Outras vezes, cada vez mais, não tenho medo. No fundo, no fundo. Porque morrer é um momento; viver são todos os outros.
Portanto, eu acho que se tô me curando de algo… é do meu medo de viver.
[obrigada a você que leu minha pensatinha até aqui <3 ]
Beijos e uma boa, verdadeiramente boa vida a tod@s.
Ps. tem gente que passou/passa por processos oncológicos mais ou menos duros; mas se tem uma coisa que eu aprendi é que não tem sentido comparar. Não quero pena pro meu lado, ou um troféu, ou julgamentos externos de quem nunca viveu a parada. Cada um é cada um. A vida é issaê mesmo, e se tem uma pergunta que nunca estacionou no meu coração é “Por que eu?” — porque eu acho que na vida só se anda pra frente (embora, claro, eu me questione como posso melhorar meus hábitos e atitudes mentais e práticas etc). Tô abrindo minha intimidade oncológica porque quem sabe alguém possa se beneficiar ou se reconfortar com alguma informação ou desabafo. Quem quiser conversar ou tiver alguma dúvida, pode me escrever.